Rosane Porto
Há alguns anos,
criei um conceito: “amigos-poesia”. Eu o utilizei para, de forma direta,
homenagear a pessoa que me convenceu que valia à pena escrever para outras
pessoas lerem. Ela me convenceu de que eu tinha algum jeito com as palavras. E
eu continuava a pensar que a poesia estava nela e que ela via em mim,
refletido, o conteúdo do qual estava cheio seu olhar e seu coração...
Bem, o tempo
passou e eu fui colecionando outros amigos... ah, me deixem explicar... É
estranho usar o termo “colecionar” para nos referir a pessoas, não é? Sim, você
está pensando que estou “coisificando” gente... mas não. Digo isto me lembrando
de Walter Benjamin (Filósofo, filho de família judaica naturalizada alemã).
Benjamin, referindo-se à criança, dizia que ela é uma colecionadora, ou seja, a
criança vai pegando do mundo objetos simbólicos e vai montando com eles o seu
eu, a sua ideia de humano e do próprio mundo... como um artista vai pintando
uma tela... eu diria deste jeito. Somos colecionadores, na verdade, não apenas
a criança o é. Por isso, digo que fui, que venho, que estou colecionando
amigos. E o que aconteceu foi o seguinte: os amigos-poesia continuam nascendo
em meu caminho. Quem os terá semeado pela beira da minha estrada? Vou contar um
segredo, a quem interessar: Amigos-poesia são diferentes dos comuns, diferentes
destes que a maioria das pessoas têm aos montes... Eles são raros: entre umas
cem espécies de “amigos-comuns”, nasce uma que é poesia. O segredo é ter
paciência e sabedoria para selecionar a espécie certa entre as outras. Ela
apresenta algumas características inconfundíveis, contudo, sutis e se você não
for sensível, poderá ignorá-la entre as demais.
Pense numa
figueira. Uma figueira selvagem... suas raízes são enormes, espessas e seguem
abrindo sulcos de terra metros além de metros à distância. Ficam expostas sobre
o chão chegando a quase um metro de altura. Nos dias de outono, de fortes
ventos e sol brilhante, você poderá se abrigar entre as raízes da figueira e se
proteger do vento e ali se aquecer e tirar um gostoso cochilo na companhia do
sol. Elas servirão de muralha para protegê-lo. E naqueles dias de verão, de sol
fortíssimo? Os galhos de uma figueira se estendem além de metros à distância e
suas folhas verdes e fartas lhe proporcionarão sombra fresquinha. E se tiver
fome, a figueira o alimentará. Os figos selvagens são saborosos: muito, muito
doces! Uma figueira sobrevive por séculos, para além da vida humana, por
gerações e ela nunca cessa de crescer! Segue expandindo seus galhos verdejantes
e suas raízes profundas, sobrevive a tempestades, ao sol forte. Ela perde suas
folhas no inverno e renasce a cada primavera e ainda que seja cortada, brotará,
pois nada poderá vencer as suas raízes! Amigos-poesia são como as figueiras:
abrigo quando se tem frio; refresco quando se está com calor; alimento quando
se tem fome. O tempo, ao seu lado, passa despercebido, pois ainda que se faça
muito ou nada, será agradável sua companhia e sua amizade viverá enquanto for a
vida, com toda a solidez que pode ter os sentimentos mais verdadeiros.
Pense num bom
vinho. A vinha foi plantada e o produtor cuidou com todo zelo necessário para
que produzisse bons frutos. A uva é colhida e a bebida é preparada
artesanalmente, depois é guardada e se espera anos e anos para degustá-la, pois
o tempo fortalece e acentua seu sabor. Bebidas requintadas não são abertas a
qualquer hora e nem partilhadas com qualquer estranho... Um bom vinho
preencherá taças elegantes e será erguido para brindar à felicidade de quem se
quer bem. A boa bebida se guarda para as boas companhias e será partilhada como
se partilha o som musical dos risos que celebram o prazer de estar com quem se
gosta, o prazer de ouvir boas histórias, ou mesmo o prazer do silêncio que é a
plenitude das palavras, muitas vezes... amigos-poesia são como bons vinhos: o
tempo os torna melhores; são caros, no sentido de que não estão por aí disponíveis
em qualquer lugar. É preciso cuidar para que cresçam. É preciso cuidar em todos
os momentos e eles estarão conosco nas horas mais preciosas.
Pense numa jóia
verdadeira. Pense no processo de retirada da pedra da mina; no transporte
cuidadoso para não danificar... a pedra foi lapidada e ganhou um belo formato e
a peça é única, ou quem sabe, dela terão poucos exemplares. Talvez ela lhe
custe meses de trabalho, mas você a quer e então, planeja, pensa... uma vez
adquirida a jóia preciosa: ficou linda, perfeita! E por sua natureza rara e
bela você cuidará, protegerá, vigiará, terá sempre por perto e colocará toda a
sua atenção a fim de prover as condições adequadas para que ela exista com
você, impecável e ela, em troca de seu cuidado e proteção, simplesmente, será
bela, singelamente bela... e você sentirá beleza também: a beleza que ela contém.
Amigos-poesia são como jóias preciosas: a boniteza de sua amizade nos contagia;
sua força nos faz mais fortes e isto devido ao fato de que, quem tem um
amigo-poesia sabe que nunca estará só, pois amigos-poesia são singelamente,
belamente amigos, irmãos, “camaradas”... eles brigam por nós e ao nosso lado,
por nossas causas; brigam conosco quando sabem que podemos ser melhores do que
estamos sendo; muitas vezes são nossos olhos, nossos ouvidos; riem e choram ao
nosso lado e seu ombro está sempre ali ao nosso alcance. Amigos são amores que
nunca morrem... assim, mais ou menos, pensou Mário Quintana... e eu também
penso.
Quanto a mim, estou
pintando a obra da minha vida, estou construindo meu mural de coleções. No meu
mural tem figueiras; tem vinhos; tem jóias preciosas. Ah, meu mural não é muito
grande e nem muito diversificado, eu sei: não tem grande quantidade de
exemplares... isto talvez faça com que algum sujeito desavisado ou que tenha
escassez de espírito e que por acaso o contemple pense em relação a ele e a mim:
“Pobre ser de vida pequenina”... Mas saibam que não me preocupo com isso: faz
parte da caminhada do viver não dar importância ao que não a tem. Importa o que
eu sei: meu mural não tem cópias; não tem plágio; não tem tinta de má qualidade
que vá escorrer na primeira chuva... as peças que o formam são todas originais,
caríssimas e não é o primeiro vento que as tirará do lugar...
Meus amigos são
meus amores mais fraternos; são as asas que me levam mais adiante até alturas
que, muitas vezes, penso não ser capaz de alcançar; são meu olhar aguçado para
as pequenas e as grandes coisas; são o vento que me move do lugar onde estou;
são a sombra e o calor; são o alimento que fortalece minha vontade de explorar
outros cantos do mundo para colecionar novas coisas... Meus amigos são...
assim, bem assim... deixe-me ver... decisivos! Esta é a palavra certa!
Decisivos! Assim: o que uma onda significa para o peixinho que precisa
regressar ao mar; o que é uma gota d’água para o arco-íris que está prestes a se
formar e dominar o céu; o que é um raio de sol para o casulo que se abrirá após
a metamorfose; o que é a chuva para a flor que irá desabrochar agora; o que é
uma brincadeira de roda: ela não se preocupa com o ponto onde começa e nem onde
termina, apenas sabe que sua função é rodar e pôr tudo em movimento com alegria...
Meus amigos são assim, o que é a poesia para a palavra que necessita de forma
para tornar possível o pensamento humano...
Meus amigos são a poesia
que ganhou carne e ossos e, sobretudo, coração...
A vocês, meus amigos, obrigada por fazerem parte do mural da minha vida!